amores expresos, blog do ANTÔNIO

Wednesday, October 24, 2007

Bicicletai!

Um dias desses, evidentemente, tudo há de dar certo, os automóveis se extinguirão e a superfície da terra será povoada apenas por bicicletas. Alguns carros, ônibus e caminhões serão expostos nos museus, feito mamutes, guilhotinas e outros monstros findos, para divertir a criançada e alertar os adultos: que o horror jamais se repita. Sobre selins acolchoados, seremos felizes para sempre.
É inegável a simpatia das bicicletas. Máquina desengonçada: se parada, destrambelha-se como um albatroz em terra, mas ao impulso dos pedais, projeta-se como uma flecha, esguia, impoluta e silenciosa. Bicicletas, ninguém pode negar, são irmãs dos guarda-chuvas, primas das girafas e parentes distantes dos abacaxis (não me peça para explicar, foi uma idéia que tive agora).
Durante todo o século XX, muitos artistas aproveitaram-se de seus encantos. É pedalando que vemos quase todo o tempo monsieur Hulot, personagem do filme Meu Tio, utopia lírica de Jacques Tati. Marceu Duchamp, depois haver exposto um mictório no museu, enfiou uma roda de bicicleta num banco de madeira e deixou as velhas noções sobre arte – literalmente – de pernas pro ar.
É impensável um facínora de bicicleta, inconcebível um ditador pedalando. As “máquinas da paz”, como as chamou Vinícius de Moraes, em sua Balada das meninas de bicicleta, são muito mais afeitas aos suaves cuidados das moças: “Bicicletai, meninada!/ Aos ventos do Arpoador/ Solta a flâmula agitada/Das cabeleiras em flor”.
As bicicletas são um indício de civilização. Recomendadas por ecologistas, urbanistas, cardiologistas e artistas, têm logo de entrar na agenda política. Ainda não vi nenhum candidato expor, no horário eleitoral, seu projeto nacional de bicicletização. Se aparecer algum, ganhará de imediato meu apoio.
Se Deus voltasse à terra e dissesse, “me mostrem aí o que vocês fizeram”, teríamos de levá-lo imediatamente a Amsterdam, para um passeio ciclístico, em torno daqueles belíssimos canais. Ou então ao Rio de Janeiro. Pegaríamos Deus no Santos Dummont (vindo do céu, é de se supor que chegará de avião) e O colocaríamos na garupa. Cruzaríamos todo o aterro, pedalando sem pressa, sob o sol ameno das quatro e meia da tarde. Passaríamos pela estátua de Drummond em Copacabana, veríamos as garotas saírem do mar em Ipanema e terminaríamos o passeio no Leblon, com um mergulho no mar e um suco de melancia, no exato momento do sol se pôr. Se Deus tiver um pingo de sensibilidade, estaremos todos salvos.

Choque de civilizações

A única ligação entre São Paulo e o Rio de Janeiro é a Dutra. Fora isso, tudo nos afasta: o clima, a geografia, os costumes e, claro, o idioma -- ou você vai me dizer que João Gordo e Evandro Mesquita falam a mesma língua?
Esta barreira idiomática, acredito, é a principal fonte dos nossos problemas: ninguém se entende, acaba surgindo uma certa animosidade, a gente acha que foi chamado de estressado, eles pensam que ouviram alguma coisa sobre malandragem e, quando vamos ver, já era: nós ficamos sem praia e eles sem pizza. Perda total.
O choque de civilizações, no entanto, está com os dias contados. Tendo em vista a amizade entre os povos, a paz mundial e os bolinhos de bacalhau do Jobi, resolvi fazer alguma coisa. Mergulhei em intensos estudos carnavalescos, escaldantes pesquisas praianas – entre outras experiências extremamente arriscadas (para um paulista) -- e trouxe à luz, acredito, uma grande contribuição para o entendimento entre os dois estados: a Pequena gramática do carioquês moderno.
Nela, cheguei às três regras básicas da língua falada por aquele povo: a regra do R, a regra do S e a regra das vogais. As duas primeiras são de conhecimento geral: R no final da palavra ou no meio se fala arrastado (porrrrrrta, perrrrrrto), e o S transforma-se em X (mixxxxxto-quente, paxxxxta de dentexxxx). É na regra sobre as vogais, no entanto, que consiste a originalidade da minha descoberta e é ela que fará com que a minha gramática, assim como meu nome, ainda ressoem por aí muitos séculos depois que eu tiver ouvido repicar o último tamborim.
Enquanto em São Paulo somos alfabetizados com o A – E – I – O – U, as crianças do Rio de Janeiro aprendem A – Ea – Ia – Oa – Ua. Sim, há um A depois de cada vogal. Pegue qualquer palavra, como copo, pé e carro, por exemplo, e aplique a regra das vogais. Agora, fale em voz alta: coapoa, péa, carroa. Viu só? Aía, éa sóa voacêa pôarrrr A eam tuadoa, troacarrr S poarrr X e eaxxxticarrr o R quea fiaca óatiamoa.
O caminho inverso também funciona. Ao ouvir uma frase em carioquês, por exemplo: “Tua éa móa manéa, paualiaxxxxta oatarioa, voalta pra Móoaca”, transcreva-a, subtraia os As sobressalentes e você terá a sentença em paulistês.
Embora seja um grande avanço em face da estagnação em que estavam os estudos do carioquês por estas bandas, minha gramática ainda tem um enorme desafio a esclarecer: como é que o S vira R na palavra mearrrrmoa (mesmo)? E, mais ainda, por que é só nessa palavra? Tema apaixonante ao qual, prometo, retornarei em breve.

Janela indiscreta

Incrível, nem terminamos novembro e o vizinho já encheu a varanda de luzinhas coreanas. Agora, da janela do meu escritório, vejo seu canteiro piscando -- verde, amarelo, vermelho --, anunciando que o natal está aí, é mais um ano que passou, menos um que passará.
Chama-lo de vizinho talvez seja exagero. Não moramos no mesmo prédio, tampouco na mesma rua, apenas dividimos uma faixa de ar, a uns trinta metros do chão, ele em seu prédio, eu no meu. Nessa estranha cumplicidade aérea, com as janelas por moldura, vou criando sua imagem, através de pequenos sinais.
Durante a copa, por exemplo, na varanda onde agora as pobres mudas seguram o desproporcional ornamento luminoso – me fazem pensar em bebês com colares havaianos --, balançava uma bandeira do Brasil. Meu vizinho respeita as instituições. E vive o presente, como dizem por aí. De uma forma bem expansiva, aliás: até o fim da copa, assoprou um cornetão com tamanha fúria que cheguei a pensar que fossem as trombetas anunciando o apocalipse. (Talvez fossem mesmo e, pensando bem, certos eventos dos últimos meses até que fazem sentido, à luz do fim do mundo).
O prédio do meu vizinho é todo moderno, igual a esses dos folhetos que entregam no farol. Tem uma piscina de uma raia só, sala de ginástica e, como dizia o tapume, na época da obra, trata-se de um “personal home”. Isso me intriga bastante: haverá algum lar que não seja pessoal? Talvez o termo signifique que os apartamentos tem apenas um quarto – ou dormitório, que é, paradoxalmente, o nome que o quarto tem enquanto ninguém dorme nele.
Agora imagino o meu vizinho, solitário em seu personal home, com sua piscina de uma raia só, tentando fazer contato com cornetas, luzes e bandeiras. Sinto pena dele. Um pouco de culpa também, por tratá-lo com cinismo e superioridade. Afinal, não tem nada de errado em ser brasileiro na copa, natalino no natal.
Acho que o solitário sou eu, que não me junto ao coro nacional de cornetas e rojões, não pisco na comunhão mundial de espírito natalino e luzinhas coreanas. Talvez eu sinta é inveja daquela janela, tão antenada com o resto do mundo, tão fiel ao calendário. Ele ali, defenestrando certezas e eu aqui, com minha janela deficitária, por onde só entram dúvidas e uma ou outra mariposa. Quanta pretensão, querer ser diferente... Papai Noel tá aí, gente, é uma realidade. Jingle bell, meu caro vizinho – e que venha o carnaval.

Time is honey

“No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga (...) O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira”
Antonio Maria


Poucas coisas neste mundo são mais tristes do que um bolo industrializado. Ali no supermercado, diante da embalagem plástica histericamente colorida, suspiro e penso: estamos perdidos. Bolo industrializado é como amor de prostituta, feliz natal de caixa automático, bom dia da Blockbuster. É um anti-bolo.
Não discuto aqui o gosto, a textura, a qualidade ou abundância do recheio de baunilha, chocolate ou qualquer outro sabor. (O capitalismo, quando se mete a fazer alguma coisa, faz muito bem feito). O problema não é de paladar, meu caro, é uma questão de princípios. Acredito que o mercado de fato melhore muitas coisas. Podem privatizar a telefonia, as estradas, as siderúrgicas. Mas não toquem no bolo! Ele não precisa de eficiência. Ele é o exemplo, talvez anacrônico, de um tempo que não é dinheiro. Um tempo íntimo, vagaroso, inútil, em que um momento pode ser vivido no presente, pelo que ele tem ali, e não como meio para, com o objetivo de.
Engana-se quem pensa que o bolo é um alimento. Nada disso. Alimento é carboidrato, é proteína, é vitamina, é o que a gente come para continuar em pé, para ir trabalhar e pagar as contas. Bolo não. É uma demonstração de carinho de uma pessoa a outra. É um mimo de avó. Um acontecimento inesperado que irrompe no meio da tarde, alardeando seu cheiro do forno para a casa, da casa para a rua e da rua para o mundo. É o que a gente come só para matar a vontade, para ficar feliz, é um elogio ao supérfluo, à graça, à alegria de estarmos vivos.
A minha geração talvez seja a primeira que pôde crescer e tornar-se adulto sem saber fritar um bife. O mercado (tanto com m maiúsculo como minúsculo) nos oferece saladas lavadas, pratos congelados, comida desidratada, self-services e deliverys. Cortar, refogar, assar e fritar são verbos pretéritos.
Se você acha que é tudo bem, o problema é seu. Eu vou espernear o quanto puder. Se entregarmos até o bolo aos códigos de barras, estaremos abrindo mão de vez da autonomia, da liberdade, do que temos de mais profundamente humano. Porque o próximo passo será privatizar as avós, estatizar a poesia, plastificar o amor, desidratar o mar e diagramar as nuvens. Tô fora.

O Brasil na faixa

Como muitos brasileiros, eu também andava por aí, cabisbaixo e macambúzio, a chutar tampinhas de garrafa e maldizer a vida, o governo, o mal-tempo e o técnico da seleção. Foi quando conheci o PSTM: Partido do Socialismo Tranqüilo e Moreno. Não se trata de mais uma nova sigla, fadada às velhas maracutaias: o PSTM tem um projeto civilizatório. Ou descivilizatório, como verá o amigo.
Quem me trouxe a luz da sabedoria foi um dos fundadores da agremiação, o ilustre professor Eduardo Correia. Mais tarde, um de seus discípulos, o Dr. Marcelo Behar, me pôs à par de todos os detalhes. (Eduardo fuma cachimbo, Dr. Behar trabalha de terno, de forma que não se pode duvidar da seriedade dos dois patrícios). O projeto do PSTM é de uma simplicidade tão grande (ou de uma grandeza tão simples), que cheguei a gargalhar de felicidade ao conhecê-lo. Veja só: pega-se a extensão da faixa litorânea brasileira e divide-se pelo número de habitantes. O resultado é esplendoroso: 50 m de areia branca para cada cidadão. Chega de tentarmos ocupar o cerrado, povoar a caatinga, adentrar aquelas imensidões ermas. Já temos o sertão mítico de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa para nosso desfrute. Para que queremos o real?
Com o PSTM o Brasil não vai pra frente, mas pro lado. Cada cidadão terá direito à sua faixa de areia e mais uns 200 metros de terra para dentro do país, apenas o suficiente para plantar uns coqueiros que dão coco, umas palmeiras onde cante o sabiá e o que mais lhe aprouver. A Amazônia e o Pantanal nós vendemos para a Europa, que já destruiu tudo o que tinha por lá e, cheia de culpa e de olho gordo nas patentes biológicas, irá cuidar das florestas. (Se não cuidar, também, já não será mais problema nosso). Os pampas a gente dá pra Argentina, em troca de carne, doce de leite, psicanalistas e centroavantes. O resto, vendemos para os EUA, que farão parques temáticos, resorts, campos de golfe e testes com armas nucleares.
Com o dinheiro da venda construiremos um SESC à cada tantos quilômetros, uns barzinhos que ofereçam peixe frito e cerveja gelada, uma linha de trem norte-sul para visitarmos amigos e parentes e sustentaremos uma ou duas gerações de vagabundos. Deitados eternamente em berço esplêndido (as cangas), poderemos enfim nos dedicar ao ócio, ao samba, ao futebol, à culinária e às grandes questões existenciais. Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Chegou a hora de assumirmos nossa vocação de Chile Atlântico. Chegou a hora de sermos felizes para sempre.

Monday, October 22, 2007

Cruzamento

(publicado no Guia do estadão)

Vou para o dentista, duas da tarde, meu carro corta com esforço a geléia modorrenta em que o ar se transformou esses dias. Um casal de adolescentes começa a atravessar a rua, de mãos dadas, à minha frente. Eles dão uma olhada para o meu carro, de leve, calculando. A garota faz menção de apressar o passo, o garoto a dissuade com um olhar de esguelha e, talvez, um discretíssimo aperto na mão. Eles seguem seu ritmo, lento, rumo a outra calçada.
Se nenhum de nós mudarmos nossas velocidades, acabarei por atropelá-los. É evidente que eles sabem disso, como é evidente que isso não acontecerá, pois eu venho devagar e basta pisar de leve no freio e pronto, saímos todos, são e salvos, eu para o dentista e eles para a casa dos pais de um deles, onde se deitarão numa cama de solteiro, embaixo de uma parede cheia de fotos e posteres e frases de canetinha hidrocor tipo Ju-eu-te-amo-amiga!, e descobrirão que a vida é boa. Este pequeno acontecimento me atinge em algum calo das minhas neuroses urbanas. Irrito-me porque eles fingiram que a velocidade deles estava certa, mas sabem que, se não morreram atropelados, é porque eu diminuí o ritmo. Mais ainda, talvez, porque o garoto passou para a menina a idéia, naquele olhar fugaz, de que com ele ela estava segura, de que era só confiar e tudo daria certo, eles chegariam ao outro lado da rua, depois ao outro lado do mundo, se quisessem, e seriam felizes para sempre. Mas foi o tiosão aqui quem tornou a travessia possível.
Percebo então que quem atravessou a rua à minha frente não foi um casal de adolescentes, foi a adolescência em si. E quem freou o carro não fui eu, mas a idade adulta. Pois é assim que a adolescência lida com o mundo. Não capitula: arrisca, peita. “Imagina, se eu mudo meu ritmo, o mundo é que se acostume a ele!”, e porque os adolescentes têm um anjo protetor dos mais poderosos, ou, pelo menos, uma sorte do tamanho de um bonde, acontece de chegarem, quase sempre, sãos e salvos do outro lado da rua.
Já a idade adulta pondera, põe o pé no freio quando convém, faz concessões ao mundo, dirige afinado com a sinfonia dos outros, dentro dessa outra geléia modorrenta cujo nome, hoje, soa tão adolescente: sistema. E por isso me irrito, porque ali, naquela rua, diminuindo meu ritmo, me percebo velho, adequado, apascentado. Eles vão no ritmo deles, a realidade que se vire e é assim, distraídos, que mudam o mundo.

Murundu

(Publicado no guia do estado)

Sempre que ouço no rádio esses boletins sobre o trânsito, sinto um leve tremor nas pernas. Não é o jargão descolado da repórter que me enerva, quando tenta quebrar o clima protocolar da narrativa com gírias como “a Jacu Pêssego vai embaçada nos dois sentidos” ou “a Jusselino Kubitchek rola sussa na região do Itaim”, mas a certeza de que, numa dessas tardes perfumadas pelo monóxido de carbono ouvirei, enfim, o boletim derradeiro de nossa civilização: a notícia de que o trânsito parou de vez.
O repórter dirá que a Marginal “está zoada” até a Dutra, a Dutra “show de horror” até o Rio de Janeiro, de onde ninguém se move até a Bahia porque pela BR 101, “mó treta”, carro já não anda, e assim sucessivamente, passando (ou melhor, não passando) por Bogotá, Manágua, Cidade do México, Vermont, até chegar na ponta do Alaska, onde um daqueles enormes caminhões americanos, se for mais um centímetro para trás, fará companhia às focas, no fundo do mar gelado. (No meio da tarde, quem sabe, haverá um boato de que existe uma maneira de ir de Pinheiros aos Jardins passando pelo Chile, mas logo será desmentido).
Chefes de Estado se reunirão em alguma ilha do Atlântico, com matemáticos, físicos e os últimos três campeões mundiais de Cubo Mágico, para debater a situação. O presidente dos EUA, dizendo que o caminhão do Alaska não pode se mexer, pedirá ao líder argentino para que a Combi na pontinha da Patagônia dê uma ré e tente ir alguns centímetros para a esquerda. Aí, quem sabe, todo mundo ande, mas Argentina, com o apoio do Mercosul, alegará que se for para trás a Combi também acabará fazendo companhia aos pinguins e, para a esquerda, de qualquer maneira, está o Chevete dourado de um paraguaio chamado Nestor, cujo motor, para piorar a situação, fundiu-se. De maneira que, todos se darão conta, o murundu rodoviário é insolúvel.
A solução virá, provavelmente, de um desses economistas americanos da moda: aterra tudo. Dessa forma, milhões de empregos serão gerados e uma das mais graves consequências do efeito estufa será neutralizada: quando as calotas polares derreterem, ninguém ficará com as canelas n’água, pois viveremos todos um andar acima. Nesse dia, a verdade tantas vezes proclamada deverá, por fim, ser aceita até pelos idosos de esquerda: com o capitalismo, mais cedo ou mais tarde, o nível de vida haveria de subir para todos.

A gostosa

(Publicado no Guia do Estadão)

Sempre que entro num recinto público -- pode ser padaria, cartório, açougue ou velório – olho em volta, procurando a gostosa. Não o faço por desejo, carência, narcisismo ou outro simples reflexo de minha banal condição masculina. A gostosa é um acontecimento literário.
Ela pode ser loira ou morena, alta ou baixa, preta, branca, japonesa ou búlgara, não importa: a gostosa é um estado de espírito. Ou, se preferirem outra palavra, tão esgarçada por programas de esporte, revistas jovens e propagandas de achocolatados: uma atitude.
Hoje fui ao cartório. Havia ali, sentada, entre os motoboys e os aposentados, a esperar sua senha apitar no painel, uma mulher que parecia a Claudia Cardinale em Era uma vez no Oeste. Estava discretamente vestida, de cabelo preso, xale sobre os ombros.
Não era a gostosa. A gostosa não deixa dúvidas. Chegou cinco minutos depois, de calça jeans desbotada agarrada à bunda, combinando com um top apertado que espremia os peitos e deixava entrever um soutien preto.
Assim que entra, com seu rebolar, o cheiro do perfume e o movimento dos cabelos ela emite a todos, como que por telepatia, a incontornável informação: atenção, a gostosa chegou.
Muda tudo. Cada um sabe exatamente qual o seu lugar social diante da gostosa. O aposentado de jaqueta bege olha de soslaio e, quase triste, suspira. As moças do cartório franzem imperceptivelmente a sobrancelha, regozijando-se de suas virtudes feitas de crachás, cafés e conjuntinhos pretos. Um rapaz de óculos, meio nerd, olha pro teto, olha pro chão, as mãos lhe sobram. Todos arriscam um olhar em direção à gostosa, mas ela dá penas uma conferida panorâmica, mascando o chiclete -- displicentemente, como quem macera corações -- e retira a senha.
Então, do conjunto desconjuntado de homens, do meio dos aposentados e míopes, dos barrigudos e coxos, dos médios, dos graves e dos agudos, surge o Macho da Gostosa. Pode ser um motoboy bem apessoado, um playboy, um pequeno empresário novo-rico de correntinha de ouro. Não acontece nada. Eles apenas se olham e, tacitamente, todos sabem, a gostosa é dele. Tristeza para alguns, alívio para outros. Depois a gostosa vai para um lado, ele pro outro, não sobra ali nenhum ator daquelas bem ensaiadas cenas, apenas um perfume doce no ar e a voz da mocinha virtuosa chamando o próximo: cinquenta e quatro, cinco quatro!

100% classe média

(publicado no Guia do estado)

Nós somos ricos?, perguntei à minha mãe, aos cinco anos. Eu achava que sim. Afinal, para mim, os pobres eram aquelas pessoas que eu via com uma prematura angústia, através do vidro de nosso Passat verde musgo, na pequena favela da Juscelino Kubitschek, perto de casa. Minha mãe disse que não éramos ricos nem pobres, éramos de classe média.
Achei o termo meio nebuloso e confesso que só fui entendê-lo realmente, em suas profundas implicações sócio-econômico-culturais, na última terça, durante o banho, quando o vizinho de cima deu a descarga e a minha água pelou. Eu gritei um palavrão, abri mais a torneira e, enquanto as costas voltavam a uma temperatura suportável, pensei: ah, então é isso.
Ser de classe média significa ter uma proximidade compulsória com os outros e, consequentemente, estar em constante negociação com o mundo. Afinal, você não está entre a minoria que faz as regras, nem junto à massa que apenas as seguem. Eu não imagino, por exemplo, o Antonio Ermírio numa reunião de condomínio, secando o rosto com um lenço e dizendo, exaltado: “nem vem, Dona Arminda, a vaga do 701 já tava prometida pra mim faz tempo, a senhora devia era cuidar do Arthur que faz um escarcéu com o patinete no playground bem depois das dez”.
Depois que minhas costas pelaram, comecei a me ver classe média a toda hora. Restaurante por quilo, por exemplo. Tem coisa mais classe média? Tudo bem, posso dizer que sou de uma classe média intelectualizada – o que significa que não ponho feijoada e sushi no mesmo prato --, mas seria ridículo negar minhas origens, na fila, diante de uma cestinha contendo “palha italiana” e ouvindo o mantra diário do capitalismo nosso de cada dia: “crédito ou débito?”
Rico não come em quilo nem morto. Ou você consegue imaginar, digamos, Paulo Skaff botando aquele tempero pronto para salada nuns ovinhos de codorna, enquanto aguarda um bigodudo gordo liberar o réchaud de croquetes?
Se um dia tiver de responder a um filho a pergunta que fiz à minha mãe, darei a explicação que ouvi de um comediante americano na televisão: “se no trabalho seu nome está escrito na roupa, você é pobre. Se o nome está escrito na mesa, você é de classe média. E se estiver escrito no prédio, você é rico”. Mas isso é coisa para me preocupar daqui a muitos anos. Urgente mesmo é, na próxima reunião de condomínio, colocar na pauta a questão da descarga do 204. 100% classe média.

Tuesday, October 16, 2007

Seleta coletiva

(para o Guia do Estado)

Eu nunca vi a vizinha. Desde que ela se mudou para o apartamento ao lado, faz alguns meses, minha imaginação alimenta-se apenas do que deposita ao pé do lixo comum, na curva da escada.
Na noite em que se mudou, houve uma festa. Ou open house, como dizem agora. Não de arromba, com YMCA acordando os palmeirenses e professores universitários de Perdizes, no meio da madrugada. Somente música suave, risos e vozes cruzavam a parede da sala -- altas o suficiente para aguçar a minha curiosidade, baixas demais para satisfazê-la.
No dia seguinte, topei com dez garrafas de Veuve Clicquot, ao lado do lixo. Minha vizinha é fina, pensei, sem evitar que uma medíocre ponta de orgulho cutucasse minha alma barnabé: o condomínio está progredindo.
Algumas semanas depois, uma sexta-feira, cheguei tarde em casa: ouvi o burburinho. Confesso, envergonhado: mal fechei a porta, colei a bochecha na parede, na esperança de captar alguma pista sobre a moradora ao lado. Prédio antigo, paredes grossas -- dessas que não fazem a alegria de empreiteiras mesquinhas ou viúvas alcoviteiras -- ouvi apenas ruído. Tudo bem, pensei: no dia seguinte, na curva da escada... Quatro garrafas de bom vinho argentino, dentro de uma sacola da importadora Mistral, três caixas de pizza, um saquinho com cascas de lichia.
Aí a coisa azedou. Enquanto, do lado de cá da parede, malbecs e lichias eram o teto da sofisticação, coisa para jantar romântico em começo de namoro, trinta centímetros de tinta, massa corrida e tijolos para lá não passavam de acompanhamento para a pizza de sexta. O ressentimento cravou sua tachinha na bunda de minha condição AB. Vieram-me à cabeça – talvez para dar à inveja o verniz que faltava a meus hábitos de consumo – uns versos de Drummond: “não sei se estou sofrendo/ ou é alguém que se diverte (...)” – mais do que eu, pelo menos – “na noite escassa”.
Nunca vi a vizinha. Ignoro se é alta, ruiva, presidenta do Lions Club ou aborígene australiana, mas ultimamente percorro apressado os três metros que me separam do lixo bege. Não quero que ela, vendo através da sacola verde do Pastorinho umas latas de Skol amassadas, cascas de mexerica e potes de Yakult, pense que não sou digno de sua vizinhança. Ou, mais grave: se ache melhor do que eu. Afinal, nada, vindo de um vizinho, pode ser pior do que isso -- nem mesmo YMCA, no meio da madrugada.