amores expresos, blog do ANTÔNIO

Thursday, February 21, 2008

Crônico

(publicado no Guia do Estadão)

O mundo não é sincrônico. Se fosse, como explicar que, nos últimos anos, as escovas de dentes tenham se transformado em algo próximo às naves de Star Wars, enquanto os botijões de gás continuam os mesmos desde muito antes de o homem pisar na lua?
Os extintores de incêndio, as BICs e os cinzeiros que ficam perto do elevador (tanto o cilíndrico quando o quadradinho, com areia), também são herança de outra era, em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa e todas as coisas continuavam a mesma coisa por pelo menos algum tempo.
Tenho uma simpatia por esses velhuscos. São como aquele japonês encontrado numa ilhota, muitos anos depois de finda a Segunda Guerra, que se recusava a aceitar a rendição do imperador Hiroito. Mas, se o soldado desinformado apareceu em jornais do mundo todo assustado, com uns olhos arregalados de mangá, os cinzeiros, botijões e BICs me parecem ostentar um orgulho nobiliárquico. Como se a BIC, do alto de seu sangue azul, dissesse às escovas, celulares e aparelhos de som: vocês podem estar sob os holofotes, mas passarão e não deixarão memória, enquanto eu continuo aqui, simples e longeva, como as amebas, as bactérias.
Meu apego pela permanência dos objetos não é só estética, mas de ordem prática. Lá pelos vinte anos, meu bisavô entrou numa loja de sapatos e comprou um par. Gostou tanto que voltou à sapataria nas próximas cinco décadas. Foi enterrado com aqueles sapatos.
Faz dois anos, comprei umas cuecas. (Desculpem-me a informação, assim, mundana -- nós nem nos conhecemos --, mas encontrar a cueca ideal é um dos pequenos prazeres da vida e a literatura – oh, a literatura! – não pode dobrar-se ao pudor). Mês passado fui à mesma loja, decidido a refazer o estoque e descobri que não existiam mais. “A cada ano o fabricante muda a coleção, senhor”. Até as cuecas?!
Sabem, eu gosto do mundo. E das coisas dentro do mundo. Apego-me a elas como a um livro, uma praia, uma música. Não quero que otimizem Cem Anos de Solidão, redesenhem Copacabana, remixem Blackbird. Ah, eficiência! Quanta beleza ainda tombará em seu nome?
Os fins não justificam os meios. Os fins, aliás, não existem: só os meios. Afinal: eu, você, os japoneses, as escovas de dentes, os botijões, as BICs e o Bispo de Botucatu voltaremos ao pó de que viemos, provando que, no fim das contas, o mundo talvez seja sincrônico. Eu, definitivamente, é que sou anacrônico.

Friday, February 1, 2008

Empadologia

(do Guia do Estado)

Talvez tenha a ver com a eleição de um operário para presidente. Talvez seja conseqüência do upgrade que os botecos tiveram nos últimos dez anos. Quem sabe, ainda, a causa seja a queda dos juros ou o Bolsa Família. Sei lá. O que importa é que, para minha felicidade, a empada está na moda.
Ela deixou aquele canto engordurado do balcão da padaria, ao lado de torresmos e ovos azuis, para cair na vida: está tanto nos lugares da moda, como o Sabiá – novo bar da Vila Madalena, onde saem em fornadas e são trazidas às mesas ainda fumegantes, nas mãos do simpaticíssimo Luis – quanto nas cadeias de fast-food. Só aqui no bairro tem duas: o Rancho da Empada e a Empada Brasil, que entregam em casa um produto de excelente qualidade. Eu fico feliz, não só porque gosto dessa mini-granada de colesterol, mas porque intuo que ela traga oculta, em meio aos camarões, algo além da bem-vinda azeitona.
Com a queda do muro de Berlim, a democracia liberal e a Colgate se espalharam pelos quatro cantos do mundo (a Colgate com muito mais eficiência, evidentemente) e falou-se bastante no fim das identidades locais. Como se, com a abertura dos mercados, tudo aquilo que fazia de nós, brasileiros, estivesse fadado ao desaparecimento, ou, quem sabe, condenado a reduzir-se a um novo sanduíche do McDonald’s – McSamba?
Oswald de Andrade, num poema chamado Erro de português, diz: “Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido o português”.
Sei que anda um pouco fora de moda acreditar em Antropofagia. Aliás, anda fora de moda acreditar em qualquer coisa, nesse mundo colgático-democrático, mas talvez a empada -- que até outro dia também era démodé – seja um raio de sol na manhã oswaldiana. Quem sabe, num possível futuro dominado pelos BRICs (Brasil, Russia, Índia e China), ela será encontrada nos quatro cantos do mundo, quase se desfazendo à cada mordida, encantando a todos com sua poderosa delicadeza?
(Talvez eu tenha me empolgado e recheado o texto com mais significados do que o tema pode comportar, caro leitor. Não peço desculpas. A crônica, como uma boa empada, é assim mesmo: um pequeno exagero).