amores expresos, blog do ANTÔNIO

Thursday, March 13, 2008

Jadeiltite

(Publicado no Guia do Estadão)

Quando quero criar um personagem estranho, descrevo um dos meus amigos. Quando quero criar um personagem mais estranho, recorro ao Guia de medicina ambulatorial e hospitalar da Unifesp/ Escola Paulista de Medicina -- Psiquiatria; um instrumento que todo escritor deveria ter. Síndromes, transtornos, psicoses, enfim, todos aqueles comportamentos que Nelson Rodrigues chamaria de “taras” ou “manias” aparecem ali, classificados e explicados pelos doutores.
O Guia é farto mas, infelizmente, incompleto. Não há, em suas 256 páginas, uma única menção à Síndrome de Jadeilton. Trata-se da “propensão a submeter-se ao jugo de pequenas autoridades; dificuldade de fazer valer seu ponto de vista em conflitos comezinhos, acarretando grande aflição e arrependimento”. Tanto eu quanto minha namorada – cujo nome não cito, para preserva-la – sofremos desse mal.
A moça em questão vem a ser uma talentosa e indômita jornalista. É capaz de inquirir, com o belo indicador em riste, chefes de Estado e generais, assassinos e empresários -- sua voz não treme, sua mão não sua e a verdade sempre aparece.
Eis que, outro dia, essa Lois Lane brasileira resolve dar uma festa. Lá pelos quarenta do segundo tempo, seu Jadeilton, o zelador, interfona, furioso, reclamando do barulho. Minha amada gelou. Era a síndrome atacando: a opinião que o zelador teria sobre ela era mais importante do que a do presidente da república. Nunca recuperou-se completamente.
Anteontem, levei uma camisa à alfaiataria aqui do bairro. Queria encurta-la. As duas senhorinhas que me receberam, no entanto, tinham planos mais ambiciosos. “Muita informação”, disse uma, desdenhando dos quatro bolsos de minha guayabera -- uma bela camisa caribenha, que García Márquez vestia ao receber o Nobel: um símbolo de nossa latinidad. “Eu tiraria três e ficava só com o da esquerda”, continuou a outra, num ataque orquestrado, visando atingir-me no cerne de minha jadeiltite. Com um fio de voz, tentei dissuadi-las, mas elas já não eram mais duas profissionais me prestando um serviço, eram senhoras do meu destino. Perdi a guayabera, mas não suas simpatias.
Espero que os autores do Guia de medicina incluam, na próxima edição, um capítulo sobre essa covardia das pequenas causas. Não agüento mais as broncas da faxineira, estou indo à falência com os aditivos que os frentistas me sugerem e, acima de tudo, nos esconder-mos de Jadeilton atrás do vaso da portaria está ficando cada dia mais difícil.

8 Comments:

Blogger Unknown said...

Muito bom! Essa síndrome ataca mais do que imaginamos...
Talvez seja porque nós nos rendemos à cultura cotidiana das pessoas que tratam de coisas "comuns".
Gosto muito do seu trabalho! Parabéns!
Abraços,

Ricardo

March 14, 2008 at 3:13 AM  
Blogger r a c h e l said...

Antonio, o mundo TÁ CHEIO DE GENTE LOUCA. Olha pro lado. Anota as histórias. Não precisa nem do guia da USP. Infelizmente...
E todos sofremos dessa síndrome de Jadeitilite. Eu me sinto ameaçada às vezes pela minha própria empregada e já comprei até ferro novo porque ela não gostou do posicionamento do fio do que eu recém tinha comprado e me olhou com olhos ameaçadores.

Tratamento já! Quando descobrir qual é, please let us know.

Bisouzocas,

March 14, 2008 at 11:21 AM  
Anonymous Anonymous said...

hauhaahuahhu.....ai antonio , você é especial por causa disso ,sabe captar pequenas coisas do cotidiano e transcreve-las com humor nos seus textos .
Eu também sofro dessa síndrome , meu caro...moro numa república que tem uma empregada e cada bronca que elas nos dá , tem mais importância e significado do que se fosse dos nossos pais rsrsr....

March 17, 2008 at 5:58 AM  
Blogger Unknown said...

Quer dizer que se nós (suas fãs) dissermos que você não pode sair da Capricho de jeito nenhum, que isso é loucura. "Você não tem vergonha de fazer isso com a gente não?!", que isso é maldade... Então você volta?????

March 17, 2008 at 11:49 AM  
Blogger Simone Iwasso said...

síndrome de classe média que sente uma certa culpa em dizer não. tranquilo que ela é bem mais comum do que parece....

beijo!

March 19, 2008 at 2:40 PM  
Blogger Simone said...

Gostaria da McOferta grande por apenas mais 50 centavos, senhor?

March 25, 2008 at 7:31 AM  
Anonymous Anonymous said...

Eu menti descaradamente pra enfermeira dois dias antes de uma cirurgia(simples, mas ainda sim, cirurgia). Era uma japonesa, baixinha e de branco, amendrontadora. E eu tenho quase um metro e oitenta. Nunca vou esquecer aqueles olhos..

April 2, 2008 at 4:45 PM  
Anonymous Lana Zanchi said...

Li todo blog,hoje,após ver,na TVCultura,teu documentário na China.rsrsrGostei.E o Jadeilton não me pega.Minha teoria é que, assumir a responsabilidade por decisões profissionais é mais fácil do que assumir as pessoais.Meu fundamento é cultural e educacional.Se vc reclamar,mesmo educadamente,a tendência das respostas é a grossura e ninguém gosta de passar por isso e acaba passando em branco pois aqueles continuarão a serem grossos. Reclamar também é cidadania. Obrigada.

April 30, 2011 at 8:33 PM  

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