amores expresos, blog do ANTÔNIO

Friday, November 28, 2008

Teatro e debate

Dia 05 de dezembro, sexta, às dez horas da noite, a grande atriz Iara Jamra vai representar um texto que escrevi. É uma cena curta, menos de dez minutos, meu primeiro trabalho para teatro. Faz parte de um projeto incrível chamado Teatro para alguém, que a Renata Jesion, outra atriz maravilhosa, está fazendo na internet. São mini-peças, mini-séries, pequenas cenas e outras milongas filmadas em planos seqüência e colocadas na rede. A primeira fornada trará uma peça do Mario Bortolotto, uma mini-série do Lourenço Muterelli e a supracitada ceninha deste neófito que vos escreve. Não precisa ir até a praça Roosevelt, nem até o SESC Belenzinho, nem até o controle remoto: basta clicar aí no computador. Quem não vir ao vivo, veja depois. Vai ficar lá no site. Abaixo uma prévia, com este autor meio tímido e de língua presa explicando do que se trata. Veja também as chamadas da mini-série e da peça.

http://www.teatroparaalguem.com.br/casa/index.php?option=com_content&view=article&id=3&Itemid=3

Monday, November 17, 2008

TEM VISTO O PESSOAL?

(publicada no Estadão)


Reconheci assim que bati o olho: Felipe Francini, 4ª B, usava aparelho com cabresto, tinha cabelo tigela e quebrou os óculos do Júlio Cabeção no último dia de aula. Descontando o cabresto e a mudança do cabelo, agora curto, o Felipe ali sentado na ponta do balcão não era muito diferente daquele de 1987.
Pensei em ir até lá, mas algo me segurou. Dizer o que? “Felipe Francini! 4ª B! Usava aparelho com cabresto, tinha cabelo tigela e quebrou os óculos do Júlio Cabeção no último dia de aula!”? Caso se lembrasse de mim, ele responderia algo na mesma linha: “Antonio Prata, 4ª A! Era goleiro e usava umas calças de moletom com couro no joelho!”.
Ficaríamos nos olhando, os sorrisos minguando ao nos darmos conta de que eu não sou mais goleiro, ele não usa aparelho – quem sabe o Julio Cabeção até operou da miopia – e não há nenhuma relação entre nós, salvo termos freqüentado a mesma escola e, agora, dividirmos o balcão de um bar.
O silêncio advindo dessa melancólica constatação não duraria muito -- nós, brasileiros, somos muito ruins de silêncio -- e seria logo preenchido por “Tem visto o pessoal?”. O outro saberia que a frase era uma fraude, um tampão colocado às pressas para que a breve felicidade do encontro não escoasse pelo ralo. “Uns mais, outros menos...”. “E o Julio Cabeção?”, eu talvez perguntasse, fazendo a indução absurda de que se ele quebrou os óculos do cara, em 1987, saberia de sua vida em 2008. Caso soubesse, no entanto, teríamos um rumo: “Parece que ganhou muito dinheiro e abriu uma pousada em Jericoacoara”. “Jericoacoara”, eu repetiria, com vergonha de emendar com um óbvio “dizem que é lindo”, mas não me ocorrendo nada mais inteligente e ouvindo o tic tac do relógio, renderia-me: “dizem que é lindo”.
Breves currículos desfraldados, ele comentaria que leu alguma coisa minha, alguma vez, em algum lugar, mas não saberia dizer o que, nem onde, nem quando e diria que não pode reclamar da área de recursos humanos. Com algum esforço eu lembraria de alguém que trabalhou na empresa em que ele trabalha, “O Augusto?! Um loiro, gordo? Não acredito!”, ele comemoraria, abriríamos sorrisos novamente, como se termos estudado juntos, nos encontrado no bar e ainda conhecermos o Augusto fosse um sinal inequívoco de que por trás da confusão das aparências só pode haver uma ordem a reger o mundo. Ele me convidaria para sentar, eu diria que estava esperando alguém e voltaria ao meu lugar.
Talvez nos encontremos em 2037, em Araçatuba, comentemos sobre esse dia, no bar e nos perguntemos outra vez sobre os destinos de Júlio Cabeção e do Augusto, um loiro, gordo (será o mesmo?), ou quem sabe morramos sem nunca mais cruzarmos nossos caminhos -- o que pode soar mui filosófico, mas é apenas a mais prosaica das constatações. Que coisa, né?

Monday, November 10, 2008

Blowing in the wind

Meu pai nunca entendeu que eu e minha irmã não tínhamos a mesma idade que ele. Isso não se restringia a nós nem mudou com o tempo: até hoje ele conversa com uma criança de três anos de igual para igual, o que faz com que elas o adorem, como se o tom as promovesse a outro patamar. Quando você é filho, no entanto, a coisa é um pouco mais complicada.
Era domingo e não sei por que cargas d’água meu pai resolveu nos levar ao Pico do Jaraguá. Não era o tipo de programa que fazíamos nos fins de semana -- um sim, um não -- que passávamos com ele. Íamos a restaurantes, bares, às casas de amigos dele, ao cinema ou ao teatro. Aquele, contudo, era um domingo atípico, tanto é que a Julia, minha meia irmã (filha do meu padrasto), também estava conosco.
Lembro-me de estar deitado no banco de trás da Brasília, com as pernas esticadas por cima do encosto e a cabeça pendendo entre os bancos da frente, próxima à base do freio de mão. Hoje em dia, se a polícia pára um carro e flagra uma criança nessa posição, o motorista deve perder a carta, talvez até guarda dos filhos, mas estávamos em 1984 e o mundo era outro, não se usava cinto de segurança nem protetor solar, as pessoas não andavam por aí com garrafinhas d’água, como se fosse o elixir da vida eterna, fazíamos cinzeiros de argila para os pais nas aulas de artes e o colesterol era apenas uma vaga ameaça de gente paranóica, como a CIA ou a KGB, dependendo da sua visão de mundo; de modo que eu seguia feliz, estrada acima, vendo as árvores passarem de cabeça para baixo, lá fora.
Foi a Maria, minha irmã mais nova, sentada próxima a janela da esquerda, quem deu o alarme: “Ó lá ela chupando o pinto dele!!!”. A Julia pisou na minha barriga, passou por cima de mim e também grudou a cara na janela, eu levantei correndo mas só cheguei a tempo de ver uns vultos dentro da Variante bege parada no acostamento. A Maria jurava ter visto direitinho: o cara pelado, uma mulher chupando-lhe o pinto. Nós três começamos a pular e gritar no banco de trás, como chipanzés amotinados. “Chupando o pinto!”, “Hahahaha!”, “Chupando o pinto dele!”, repetíamos, sem acreditar que havíamos passado tão próximos daquele evento inencaixável na ordem geral das coisas. A gritaria estancou de imediato quando meu pai, com a naturalidade de quem discute a situação com senhores de cinqüenta anos, perguntou: “o que é que tem?”.
Até aquele segundo, em minha vida, chupar pinto não tinha nenhuma relação com a sexualidade humana, o prazer, o afeto. A frase “chupa meu pinto!” pertencia ao terreno das ofensas, ao jargão do futebol, como “prensada é da defesa”, “gol só dentro da área”, e “vou te encher de porrada” – essa sim uma ameaça que poderia ser cumprida. Chupar o pinto era metafórico, como “cospe e sai nadando” ou “vai ver se eu estou na esquina” e jamais tinha passado por nossas cabeças (eu devia ter uns nove, a Julia oito e a Maria, sete) que alguém de fato fizesse aquilo -- e por que faria?!
“Não sei do que vocês tão rindo tanto”, continuou meu pai, sério. Eu só consegui gritar o óbvio, de pé no assento de trás, metendo o corpo entre os bancos da frente: “pai! Ela tava chupando o pinto dele!”. Meu pai abanou a cabeça. “Antonio, chupar pinto é uma coisa muito normal. E saudável. Todo casal faz isso” – ele disse, e acreditem: era só o começo. O pior, o que subverteu todo o arcabouço conceitual construído até meus nove anos, o que provavelmente faria com que fogos de artifícios fossem vistos nos dois hemisférios do meu cérebro, caso estivesse num desses aparelhos de ressonância magnética, o que, dada a intensidade, provavelmente fixou toda a história em minha cabeça, desde a posição em que me encontrava no banco da Brasília até a cor do céu, quando chegamos ao mirante, lá no alto, viria a seguir: “Normal, sim. A Juliana chupa meu pinto. A sua mãe chupa o pinto do marido dela. Sua avó chupa o pinto do seu avô. A tia Lurdes chupa o pinto do Augusto, a professora Carla chupa o pinto do Josué, ah!, os homens que namoram homens então, como o Pedrinho e o Ivan, chupam muito o pinto um do outro. Todo mundo que namora faz isso. E é muito gostoso. Não tem porque rir.”
Chegamos ao Pico do Jaraguá, descemos do carro e vimos o pôr do sol. Eu olhava a cidade lá longe e só conseguia pensar que por trás de cada janela, dentro de cada carro, debaixo de cada teto, atrás de cada porta havia pessoas que chupavam ou eram chupadas, meus pés pisavam sob um planeta onde dois bilhões e meio de seres humanos colocavam os pintos dos ouros dois bilhões e meio na boca. Talvez fosse o vento, ou a memória tenha inserido o áudio mais tarde sobre a imagem, mas o som que eu ainda ouço, lá no alto, é equivalente ao de um canudo do tamanho de um prédio puxando o último gole de um copo gigante de milk-shake: sssrrrrrrrlllllllllllluuuuuuuuurrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrp!
Na volta, ninguém falava nada. Entramos em casa correndo, com os olhos arregalados. Não tão arregalados quanto ficaram os de minha mãe, meu padrasto e mais uns dois casais de amigos, que tomavam vinho e comiam alguma coisa, quando desandamos a falar: “Mãe! Mãe! É verdade que você chupa o pinto dele?!”. “A vovó chupa o pinto do vovô?!”, “A minha avó também, pai?! A minha avó também chupa pinto?!!”, “Todo mundo?! Todo mundo chupa pinto?!”. “Mãe, mãe, quando eu crescer eu também vou ter que chupar pinto?!”. “Com que idade?! Com que idade começa a chupar pinto, pai?!”.
A última cena de que me lembro nesse dia é vista do alto da escada, de onde eu estava bisbilhotando, já de pijama. Havia taças vazias e pratos sujos na mesa, os casais tinham ido embora. “Mas será que você não entende? Eles são crianças!”, dizia minha mãe ao meu pai, pelo telefone, aparentando mais cansaço do que raiva na voz. Não lembro com que sonhei naquela noite.

Sunday, November 2, 2008

SORVETE DE CHEESECAKE

(PUBLICADO NO ESTADÃO)

Diz a lenda que Joe Kennedy, pai do presidente, pressentiu o crash de 29 ao receber dicas de investimento do garoto que lustrava seus sapatos. Se até o engraxate estava especulando -- especulou o especulador -- era porque a especulação já tinha ido muito mais longe do que qualquer especulador poderia ter especulado.
Eu, modéstia à parte, também farejei que algo ia mal na economia alguns meses atrás, ao entrar numa grande vídeo-locadora e dar de cara com um jogo de panelas (linha Firenze, revestimento de teflon), seis pares de meias brancas (made in China, dez reais) e uma seção inteira dedicada às lingeries. Quando você acha calcinhas onde buscava Hitchcock, só pode concluir que o mercado está completamente desregulado, não?
Na verdade, eu suspeitava que as coisas andavam confusas desde uma remota tarde no século XX em que a banca do seu Arlindo passou a vender água de coco. Em pouco tempo o jornaleiro comprou um freezer vertical e começou a oferecer também cervejas, refrigerantes e bebidas isotônicas, onde antes havia apenas jornais e revistas, abalando assim um dos pilares de meu pensamento infantil -- a crença de que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa.
Preocupado com a quebra de meus paradigmas, comecei a buscar alguma explicação no papo dos adultos. Falavam sobre a globalização, o fim das fronteiras e a abertura dos mercados. Era isso: seu Arlindo estava abrindo um mercado. E não só ele, percebi, ao reparar no que acontecia com os postos de gasolina: ali, naquela casinha onde antes funcionava uma borracharia, com uma banheira de água imunda e um pôster da Maria Zilda arrancado de uma Playboy de 85, passaram a vender lasanhas congeladas, papel higiênico, canetas hidrocor e outros itens de primeira, segunda ou terceira necessidade.
O que era o tal fim das fronteiras só entendi nos anos 90, não com desmantelo da Iugoslávia, mas ao deparar-me com um saco de batatas-fritas sabor churrasco. Depois vieram o sorvete de cheesecake, o chocolate de cookies e a pizza de cachorro-quente (e ainda crêem que o mercado se regula?!), mas nem me abalei: já estava claro que uma coisa poderia ser outra coisa e, como vimos nos últimos meses, era possível todas as coisas transformarem-se em coisa nenhuma.
Quando entrei na locadora, portanto, e deparei-me com panelas, meias e calcinhas, entendi que aquele era o apogeu do movimento iniciado lá atrás com os cocos do seu Arlindo e que logo viria a débâcle. O pai do Kennedy, em 29, vendeu as ações e comprou terras e imóveis. Eu, dentro de minhas limitações, apenas aluguei um filme e levei um daqueles pacotes com seis meias, pela incrível bagatela de dez reais. Meias brancas, médias e lisas, como convém. Afinal, em momentos de incerteza, temos que nos refugiar na tradição.